Pedro Lauret
Pedro Lauret nasceu em Lisboa a 23 de janeiro de 1949. Estudou no Liceu Camões (1960-1967), onde foi dirigente da Juventude Escolar Católica (JEC), participando em movimentações estudantis. Entrou na Escola Naval em 1967. Foi membro fundador do movimento clandestino de Oficiais da Armada, que teve o seu início no ano de 1970. Fez uma comissão na Guiné, entre os anos de 1971-1973, como oficial imediato de uma Lancha de Fiscalização. Em outubro de 1973 integrou o primeiro grupo de Oficiais da Armada. Fez parte da comissão que teve a seu cargo a redação do Programa do Movimento das Forças Armadas (MFA). Após a Revolução dos Cravos pertenceu ao gabinete do Almirante Pinheiro de Azevedo, Chefe do Estado Maior da Armada e membro da Junta de Salvação Nacional. Pertenceu à Comissão Coordenadora do MFA na Marinha e foi membro da Assembleia do MFA. Desde o ano de 2005 que integra a Direção da Associação 25 de Abril.
R: Nasci em Lisboa numa família onde, nas duas gerações anteriores à minha, não havia tradição de intervenção política, pelo que até cerca dos doze anos não me apercebi das características da sociedade onde estava inserido, e a minha vida decorria num ambiente calmo que ainda hoje recordo com saudade. Só em 1961, com o início da guerra em Angola é que senti pela primeira vez um sobressalto social, assim como com a queda da Índia em Dezembro do mesmo ano. Em 1962, tenho o meu primeiro choque quando assisti à violência policial por altura dos movimentos estudantis de 1962. Andei no Liceu Camões, zona onde se situavam outros estabelecimentos de ensino: Escola Superior de Medicina Veterinária, Escola António Arroio, e mais abaixo o Instituto Superior Técnico. A Polícia, pela hora de saída das aulas, cercou a zona empurrando os estudantes para o Largo do Saldanha, onde os começou a agredir violentamente. Consegui escapar à violência certamente por ser muito pequeno, mas ainda ouvi um polícia gritar-me: "foge se não também levas...". A partir desses anos militei na JEC (Juventude Escolar Católica), numa altura de grande evolução da Igreja Católica, com o Papa João XXIII, o concílio Vaticano II e as encíclicas papais, sobretudo a "Pacem in Terris" em que os valores das liberdades individuais e sociais eram abertamente defendidas. A minha consciência política foi evoluindo assim como a minha oposição ao regime. As minhas leituras foram sendo cada vez mais exigentes e encontrei em Albert Camus e outros autores a argumentação necessária para romper com dogmas e doutrinas que tinha vindo a seguir e evolui, como a geração daquele tempo para Marx e Engels. É assim que em 1967 entrei na Escola Naval em processo de radicalização política e de oposição ao regime e à guerra. Na Escola Naval começaram a criar-se movimentos políticos de oposicionistas, tendo nas eleições de 1969 havido grande movimentação de apoio à CDE. Em 1970 integro com oficias e cadetes da Marinha um movimento político clandestino de oposição ao regime. Em 1971 sou mobilizado para a Guiné onde penso ter conseguido, apesar da minha oposição à guerra, manter o meu navio operacional com o objectivo máximo de conseguir que os meus subordinados e o meu navio estivessem a salvo. Com o fim da comissão em Julho de 1973 regresso a Lisboa, onde integrei o primeiro grupo da Marinha de ligação ao Movimento dos Capitães. No início de 1974 fiz parte da comissão de redacção do Programa do Movimento das Forças Armadas.
R: Estive em comissão na Guiné como oficial Imediato de uma Lancha de Fiscalização Grande, tendo percorrido todos os rios e braços de mar navegáveis pelo navio: do Cacheu junto à fronteira com o Senegal até ao Cacine, na fronteira Sul com a Guiné Conacri.
Recordo as difíceis condições de vida dos soldados nos aquartelamentos em terra, muitas vezes com instalações muito deficientes e sujeitos a flagelações, por vezes diárias, dos guerrilheiros do PAIGC. Deve recordar-se que uma comissão durava cerca de dois anos, e muitos militares não tinham capacidade de vir de férias à metrópole. Passavam assim aqueles jovens soldados um longo período em condições de vida e operacionais muito difíceis.
Recordo também o período em que a guerrilha do PAIGC passou a dispor de um míssil antiaéreo, de fabrico soviético, tendo conseguido, em Março de 1973, abater dois caças Fiat G91. A partir daí a principal vantagem das Forças Armadas Portugueses, o controlo absoluto do espaço aéreo foi posto em causa. A Força Aérea passou a voar com várias limitações prejudicando fundamentalmente duas das suas funções principais: a evacuação de feridos do teatro de operações para o Hospital Militar de Bissau e ainda interromper acções ofensivas da guerrilha sobre aquartelamentos e colunas militares portuguesas. Estas limitações reflectiram-se de imediato na situação militar no terreno onde os guerrilheiros do PAIGC passaram a ter capacidade de desferir ataques aos nossos aquartelamentos com maior liberdade, e por consequência, passando a ser muito mais eficazes e destrutivos. As limitações nas evacuações, deixando feridos no terreno acabou por ter um efeito muito negativo na moral das tropas, que já não era elevado.
Em Maio e Junho de 1973, o PAIGC lança uma poderosa acção militar, primeiro a Norte sobre o aquartelamento de Guidage, tendo abatido três aeronaves num só dia, e depois lança uma segunda ofensiva na frente a Sul, sobre Guileje, obrigando as nossas tropas a abandonar aquele aquartelamento, tendo os efectivos ali estacionados retirado para Gadamael, junto ao Rio Cacine, passando a ser flagelados violentamente, tendo-se criado uma enorme pressão militar, só tendo sido resolvida pela actuação das três companhias do Batalhão de Paraquedistas. Estive com o meu navio em ambas as situações.
R: No dia 25 de Abril encontrava-me num navio no rio Tejo, integrado numa esquadra da NATO a efectuar um exercício de saída daqueles navios de águas territoriais portuguesas. Após o termo do exercício, já da parte da tarde, regressei à Base Naval de Lisboa no Alfeite.
R: Obviamente que uma imensa alegria, mas em simultâneo uma grande preocupação. Era para mim muito claro que o MFA tinha assumido perante os portugueses uma enorme responsabilidade e que para cumprir o que prometera no seu programa os militares tinham pela frente grandes tarefas a concretizar e enormes dificuldades a ultrapassar.
Após o 25 de Abril fui destacado para o gabinete do Chefe do Estado Maior da Armada e membro da Junta de Salvação Nacional, almirante Pinheiro de Azevedo. Aí tive o privilégio de colaborar na organização das novas estruturas associativas de sargentos e praças, que em minha opinião muito contribuíram para que a Marinha tivesse sido o ramo que menos convulsões internas sentiu e onde a cadeia de comando sempre se manteve intacta.
Muitos momentos de grande incerteza e ansiedade foram então vividos, com as tentativas de golpe e de desmantelamento do MFA por parte do general Spínola (reunião da Manutenção Militar, crise Palma Carlos, 28 de Setembro e 11 de Março).
Muitas e grandes conquistas foram então conseguidas: liberdade de imprensa, liberdade de reunião, manifestação e associação, liberdade sindical, formação de partidos políticos e tantos outros direitos até então negados.
A obtenção da paz e a independência das antigas colónias foi um processo que se revestiu de grande dificuldade, até pelas interferências de grandes potências num claro ambiente de guerra-fria.
Grande e fantástico trabalho foi o de recenseamento eleitoral e também a actividade desenvolvida pela Dinamização Cultural.
As eleições de 1975 e de 1976, constituíram, para mim, um culminar de objectivos e tarefas a que nos havíamos proposto.
O 25 de Novembro de 1975 foi sem dúvida o período mais difícil e doloroso de todo este processo. Muitos dos meus amigos e camaradas forma presos, eu próprio durante algum tempo não sabia se me aconteceria o mesmo. A minha carreira militar na Marinha não mais se recompôs, eu e muitos camaradas sofremos uma prolongada perseguição e descriminação, prejudicando-nos a carreira de forma irreversível, pelo que muitos de nós passamos à situação de reserva prematuramente.
R: Reforçou as minhas convicções na Liberdade e Democracia. Do ponto de vista da minha vida pessoal e profissional, fui muito prejudicado, como quase todos os militares de Abril. É o preço de quem faz uma revolução.
R: Acho que sim, temos vindo a ser esquecidos, tanto mais que já estamos velhos. De alguma forma é natural. O MFA nunca teve uma liderança forte, sempre foi um movimento colectivo, onde muitos e importantes intervenientes nunca foram sequer conhecidos. As revoluções tendem a "engolir" os seus responsáveis e fazem emergir novas elites que muitas vezes acabam elas próprias por se perpetuar na História.
R: É uma pergunta de difícil resposta, pois o mundo sofreu grandes alterações desde então até hoje. Alterações a nível político, económico-financeiro, social, científico e tecnológico. Ninguém poderia prever tão grande intensidade de modificações logo as previsões para o nosso país e o que idealizaríamos para ele são difíceis de julgar. No entanto, em minha opinião, Portugal sofreu um volume de modificações de tal forma grande que o país está hoje irreconhecível para melhor. Existiram e existem problemas, alguns graves, mas nunca pensaria que passados estes anos se tivessem feitos tantos progressos na educação, saúde, habitação, infraestruturas, na qualidade de vida dos portuguese e em paz. Para mim tudo o que foi feito excede as minhas melhores espectativas.
R: A pergunta: o que é preciso mudar em Portugal para "se cumprir abril"? que ainda hoje muitos fazem, não me parece que faça muito sentido. É necessário entendermos que o MFA foi constituído por um conjunto de jovens oficiais, sendo a sua principal e agregadora motivação o fim de uma guerra que se prolongava há mais de uma década e que se agravava muito, do ponto de vista militar, na Guiné e em Moçambique, e para a qual o regime não tinha qualquer solução. As Forças Armadas portuguesas encontravam-se esgotadas em termos de pessoal e material, pelo que uma derrota humilhante na Guiné começava a surgir como uma séria possibilidade. Tinham os militares do MFA a consciência que o fim da guerra só poderia acontecer com o derrube do regime e a implantação de uma nova sociedade democrática. Politicamente o que uniu os militares foi o seu programa - o Programa do MFA - que foi integralmente cumprido em apenas dois anos: desmantelamento do Estado e organizações da ditadura; democratização da sociedade; fim da guerra e independência das antigas colónias; fim dos grandes monopólios económicos e financeiros; eleições livres para uma Assembleia Constituinte; aprovação de uma nova Constituição da República e eleições para a Assembleia da República, Presidente da República, Assembleias Regionais dos Açores e Madeira e Autárquicas tudo em 1976. Após estas tarefas terminadas a legitimidade revolucionária do MFA foi transferida do para órgãos eleitos democraticamente. Desta forma é meu entender que após 1976 o 25 de Abril de 1974 foi cumprido.